Alexandre Delmar | fundão
ouvir com auscultadores
A partir do Fundão, em Março de 2023, trabalhámos com o artista visual Alexandre Delmar numa expedição sobre os sons, o nevoeiro, as pedras, os bitchos e outros artefactos que gravitam a Lagoa Escura, na Serra da Estrela. Diz-se que, quando há tempestade no mar, a lagoa sobe e aparecem restos de barcos naufragados.
clique na seta para aumentar o video
clique na seta para aumentar o video
Bitchos
[Em torno da Lagoa Escura, a paisagem é marcada por formações arbustivas rasteiras como o zimbro modelado (assim designado por alguns botânicos por moldar a sua forma às rochas) e a urze, cujos crescimentos horizontais sinuosos se devem à neve, ao vento forte e aos solos pobres. Recolhidos estes espécimes mortos e outras madeiras que gravitam as margens, ordenaram-se, preservaram-se e expuseram-se segundo técnicas de colecionismo entomológico.]
[Em torno da Lagoa Escura, a paisagem é marcada por formações arbustivas rasteiras como o zimbro modelado (assim designado por alguns botânicos por moldar a sua forma às rochas) e a urze, cujos crescimentos horizontais sinuosos se devem à neve, ao vento forte e aos solos pobres. Recolhidos estes espécimes mortos e outras madeiras que gravitam as margens, ordenaram-se, preservaram-se e expuseram-se segundo técnicas de colecionismo entomológico.]
A última expedição - Fenómenos ordinários acima e abaixo da linha de água.
Por João Terras
A proa de um barco no rio Cávado, sempre soube que não era de um barco pirata, mas foi por ela que li sobre piratas.
Toda a expedição tem origem no relato. Lembro-me de quando o filósofo Bataille nos falava das grutas de Lascaux. O relato vinha das imagens que víamos quando o fogo se agitava. Haveríamos de saber o tempo da gruta e o tempo daquelas imagens, soubemos imaginar ordinariamente porque o faziam. Soube Bataille, quando agitou o fogo, imaginar o homem de Lascaux, o mais fascinante no meio de tudo isto, a imagem desse possível homem, ali, parado, de frente para a escuridão, em silêncio, há milhares de anos.
Consigo imaginar 42 expedicionários a sair de Santa Apolónia, Lisboa, num comboio atrás de um relato. Alcançar o cume do conhecimento, seguir atrás do que excitava a imaginação desse outro distante, desses serranos que habitavam lá longe. Biólogos, cientistas, e mais, os médicos, esses são os que a minha imaginação mais consegue ver. Procurar a altitude e a água para a cura, procurar a cura num lugar, consigo imaginá-los a almoçar no acampamento ao lado da Lagoa Escura, a deitarem-se em grupo, consigo vê-los com a mesma força que consigo imaginar as imagens dos auroques a surgir pelo fogo nas paredes da gruta.
A expedição, como todo o século XIX, movia-se entre o conhecimento e a técnica. Registar, catalogar, relacionar e estratificar. A visão panorâmica do mundo, da paisagem e dos acontecimentos, o sentido da visão global, do controle, do domínio. Esta foi a necessidade e o movimento panorâmico que moveu o final desse século.
--- O problema foi da descoberta do ferro e do vidro quando já tínhamos tanta pedra e água ---
Não vemos a toda a volta, nem o fundo do mar.
Até à descrição do território tínhamos apenas as impressões do lugar. Tínhamos apenas a invisibilidade da oralidade e as imagens que aqui se imprimiam. Tínhamos apenas as impressões do outro e os relatos de uma comunidade que habitava no seu ritmo.
Alexandre Delmar e Fernando Mota aproximaram-se do gesto de qualquer um dos 42 expedicionários que partiram de Lisboa no verão de 1881. Como qualquer um de nós.
Foram lançados instrumentos sobre o território, observaram-se fenómenos, reconheceram-se acontecimentos, registaram-se formas sonoras, sólidas, líquidas, o tempo e a luz. Agasalham-se os corpos, caminha-se, remete-se o corpo à aridez do território.
Em última instância, de todas estas imagens, poderia restar apenas essa mesma caminhada.
O território foi o laboratório, alcançar o conhecimento nunca tocando o cume, esse só o corpo exausto o traduz.
Deste momento expositivo, resultam seis instalações propositivas de uma possível expedição ordinária. Traduzem aquilo que qualquer imagem poderá traduzir de um lugar. Seis simulacros de momentos específicos, conduzindo e devolvendo esse mesmo lugar numa montagem rítmica acima e abaixo da linha de água: pedras, formas, nevoeiros, marcas, sons, águas.
O que nunca nos contaram os 42 expedicionários foi do tempo, da dureza e da aridez a que propuseram os seus próprios corpos. Se o contassem com maior avidez, não iríamos da mesma forma à Lagoa Escura, não iríamos tão sós, ou, ao irmos, saberíamos que o cume do conhecimento continuaria ad eternum sustido no relato do encontro de um corpo com uma terra imensamente maior.
Concluímos também, agora, que toda a expedição resulta, por fim, numa montagem, numa encenação.
Expedição, exposição, proposição, posição. É o que aqui vemos, uma última montagem a iniciar-se e a devolução do mar à lagoa. Queda, vertigem, escuro, escura.
Por João Terras
A proa de um barco no rio Cávado, sempre soube que não era de um barco pirata, mas foi por ela que li sobre piratas.
Toda a expedição tem origem no relato. Lembro-me de quando o filósofo Bataille nos falava das grutas de Lascaux. O relato vinha das imagens que víamos quando o fogo se agitava. Haveríamos de saber o tempo da gruta e o tempo daquelas imagens, soubemos imaginar ordinariamente porque o faziam. Soube Bataille, quando agitou o fogo, imaginar o homem de Lascaux, o mais fascinante no meio de tudo isto, a imagem desse possível homem, ali, parado, de frente para a escuridão, em silêncio, há milhares de anos.
Consigo imaginar 42 expedicionários a sair de Santa Apolónia, Lisboa, num comboio atrás de um relato. Alcançar o cume do conhecimento, seguir atrás do que excitava a imaginação desse outro distante, desses serranos que habitavam lá longe. Biólogos, cientistas, e mais, os médicos, esses são os que a minha imaginação mais consegue ver. Procurar a altitude e a água para a cura, procurar a cura num lugar, consigo imaginá-los a almoçar no acampamento ao lado da Lagoa Escura, a deitarem-se em grupo, consigo vê-los com a mesma força que consigo imaginar as imagens dos auroques a surgir pelo fogo nas paredes da gruta.
A expedição, como todo o século XIX, movia-se entre o conhecimento e a técnica. Registar, catalogar, relacionar e estratificar. A visão panorâmica do mundo, da paisagem e dos acontecimentos, o sentido da visão global, do controle, do domínio. Esta foi a necessidade e o movimento panorâmico que moveu o final desse século.
--- O problema foi da descoberta do ferro e do vidro quando já tínhamos tanta pedra e água ---
Não vemos a toda a volta, nem o fundo do mar.
Até à descrição do território tínhamos apenas as impressões do lugar. Tínhamos apenas a invisibilidade da oralidade e as imagens que aqui se imprimiam. Tínhamos apenas as impressões do outro e os relatos de uma comunidade que habitava no seu ritmo.
Alexandre Delmar e Fernando Mota aproximaram-se do gesto de qualquer um dos 42 expedicionários que partiram de Lisboa no verão de 1881. Como qualquer um de nós.
Foram lançados instrumentos sobre o território, observaram-se fenómenos, reconheceram-se acontecimentos, registaram-se formas sonoras, sólidas, líquidas, o tempo e a luz. Agasalham-se os corpos, caminha-se, remete-se o corpo à aridez do território.
Em última instância, de todas estas imagens, poderia restar apenas essa mesma caminhada.
O território foi o laboratório, alcançar o conhecimento nunca tocando o cume, esse só o corpo exausto o traduz.
Deste momento expositivo, resultam seis instalações propositivas de uma possível expedição ordinária. Traduzem aquilo que qualquer imagem poderá traduzir de um lugar. Seis simulacros de momentos específicos, conduzindo e devolvendo esse mesmo lugar numa montagem rítmica acima e abaixo da linha de água: pedras, formas, nevoeiros, marcas, sons, águas.
O que nunca nos contaram os 42 expedicionários foi do tempo, da dureza e da aridez a que propuseram os seus próprios corpos. Se o contassem com maior avidez, não iríamos da mesma forma à Lagoa Escura, não iríamos tão sós, ou, ao irmos, saberíamos que o cume do conhecimento continuaria ad eternum sustido no relato do encontro de um corpo com uma terra imensamente maior.
Concluímos também, agora, que toda a expedição resulta, por fim, numa montagem, numa encenação.
Expedição, exposição, proposição, posição. É o que aqui vemos, uma última montagem a iniciar-se e a devolução do mar à lagoa. Queda, vertigem, escuro, escura.